Toniolo, fruto do imaginário porto-alegrense

Leonardo Rodrigues
5 min readFeb 1, 2018
Arteiro, como sempre. Frame retirado do vídeo “ Toniolo Anarquista em Ação 05 de julho de 2015 — parte 1”, disponível no Youtube.

I

Um dos personagens emblemáticos da história de Porto Alegre, Sérgio José Toniolo é um homem de trajetória tempestuosa. Nascido em 1945, foi policial civil de carreira até ser aposentado, forçosamente, diagnosticado com problemas psiquiátricos — mais precisamente, esquizofrenia paranóide — coincidentemente após tecer críticas ao chefe de polícia em coluna local. Desde então, deu início a sua jornada de adesivos, spray e cartazes, em estoque aparentemente inacabável.

Toniolo sendo preso no Piratini. Foto: Periódico Viés/UFRGS.

Lembra de episódio emblemático em 1984, quando ameaçou pichar o Palácio Piratini, forçando a mobilização de um numeroso contingente de brigadianos para pará-lo, sem sucesso. Foi preso enquanto terminava o “O” final de seu sobrenome (até hoje sua marca registrada), eternizado desde então como símbolo revoltoso.

Ávido denunciante das condições pelas quais vivia na época da ditadura militar, foi perseguido por seu hábito de escrever. Dizem que chegava a mandar dezenas de cartas por semana aos jornais de grande circulação em Porto Alegre — todas carregadas de teor crítico, característico de Toniolo.

“Os muros são do povo, e os muros são os únicos lugares que o povo tem para se expressar.”

II

Não é de hoje que o ser humano se apropria do espaço para perpetuar mensagens, ideias, histórias, símbolos e demais marcações de um determinado tempo e contexto sociopolítico. Retratos das civilizações pré-escrita já sugeriam tal capacidade, com a arte rupestre expressa em pinturas e gravuras nas paredes das cavernas, retratando o cotidiano.

A apropriação ganhou novas formas ao longo da história, sendo sempre dependente do presente contexto, bem como da cultura e do imaginário particular de cada sociedade. A apropriação ganha uma multitude de formas: as visualidades ganham novos contornos, com seu escopo ampliado para o arquitetônico e o funcional. Os hipotéticos jardins suspensos da Babilônia representavam o que de mais imponente existia na próspera sociedade babilônica; os grandes castelos da Idade Média e Moderna representavam a imponência do poderio das classes dominantes e o Estado absoluto, bem como as fábricas da Revolução Industrial simbolizaram o marco urbano-expansionista das sociedades contemporâneas e a mudança significativa de paradigma nas relações do ser com o espaço a sua volta.

É condição inerente ao ser humano se apropriar (do) e modificar o espaço. As modificações e apropriações presumem diversos motivos e particularidades. Toniolo é apenas mais um ser humano que se apropria e modifica o espaço a sua volta.

III

A “marca” Toniolo é onipresente na cidade de Porto Alegre. Passando por pichações, adesivos e cartazes, não há sujeito que não tenha se deparado, de alguma forma, com uma visualidade que ostente “Toniolo”, frequentemente acompanhada de alguma inscrição com viés crítico e subversivo, como as famosas campanhas paralelas para cargos públicos, nas quais “concorre” pelo não-registrado PAB (Partido Anarquista Brasileiro), sempre através do número 5143.

Conforme o periódico Viés da UFRGS, Toniolo tentou concorrer ao cargo de Governador do Rio Grande do Sul em 1990. Para tal, despejou milhares de panfletos pelas ruas do Centro de Porto Alegre, onde descrevia suas experiências como pixador, além de esclarecer suas intenções: “Partido Anarquista — S.J. Toniolo — Governador — Para colar na Cédula” era o escrito. Desnecessário dizer que foi repetidamente processado por tais atos, em uma época em que incitar o voto nulo ainda era considerado crime.

Toniolo ainda é conhecido por produzir material gráfico munido de ataques e sátiras endereçadas aos donos do poder. “A DILMA É UMA GATA”, “JUSTIÇA=MERDA”, “O Tarso kiss, O Genro kiss” são apenas alguns destaques de um portfólio marcado pela acidez. Toniolo não poupa esforços — nem ninguém.

Uma amostra das intervenções de Toniolo. Foto: Blog Desobediência Vegana.

IV

Michel Maffesoli, sociólogo francês, proeminente estudioso do imaginário e discípulo de Gilbert Durand, pioneiro do conceito, o define como “um estado de espírito que caracteriza um povo”. Surpassa as individualidades em detrimento de uma ‘consciência coletiva’, sendo tão palpável quanto real e materializado em uma série de mecanismos sociais. O imaginário é uma condição análoga a aura de Benjamin, a qual “envolve e ultrapassa a obra” — o imaginário envolve e ultrapassa o indivíduo.

V

Embora o nome “Toniolo” seja inconteste em Porto Alegre, poucas pessoas realmente sabem do que se trata — ou de quem se trata. Hipóteses surgem por quem se questiona. Arruaceiro anarquista financiado por quem? Quem entrega tamanha dedicação ao ressentimento e a fúria?

A verdade é que Toniolo é um fenômeno no qual o indivíduo é um mero coadjuvante. Sujeito e simbólico são indistinguíveis, e o pixador deixa de ser carne e osso para tornar-se revolta e descompasso. Um marco do desconforto generalizado com as fontes de poder, independente de orientação política ou ordem vigente. Toda forma de poder é passível de ser contestada, e é isso que Sérgio apresenta através de suas intervenções.

Extraído do vídeo “Toniolo Anarquista retorna ao Monumento dos Açorianos, dia 25 de julho, parte 2”. Na descrição do vídeo, constava o seguinte: “33 anos de muita pixação no Monumento aos Açorianos, com muita vontade e desmoralização retorna a fazer o que já havia escrito anos atras, sendo assim uma afronta para as autoridades, Toniolo deixa sua marca na historia.”

VI

Foto: Fernando Ghilardi.

Toniolo é componente integral da imaginação porto-alegrense. Talvez não tanto o indivíduo, mas sim o que simboliza. O simbolismo revoltoso de Toniolo é elemento marcante na cultura da cidade, subscrito no imaginário e que representa o sujo, o descompassado, o ruidoso. Não há quem não tenha visto uma pixação, adesivo ou cartaz com seu nome. A luta contra o ‘sistema’ adquiriu um novo sentido em Porto Alegre graças ao Sérgio.

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